Introdução

A judicialização da saúde tem sido um tema recorrente no Brasil, principalmente no que se refere à cobertura de medicamentos pelos planos de saúde. Um dos debates mais recentes envolve a obrigatoriedade de custeio de fármacos à base de canabidiol (CBD), especialmente aqueles que não possuem produção nacional e dependem de autorização especial da ANVISA para importação.
Neste artigo, vamos explorar os aspectos legais e jurisprudenciais relacionados à tutela de urgência para obtenção de medicamentos à base de canabidiol, analisando a obrigação dos planos de saúde e os precedentes judiciais que garantem o direito dos pacientes.
1. O que é a Tutela de Urgência?
A tutela de urgência é uma medida judicial que pode ser concedida quando há elementos que demonstrem a probabilidade do direito do autor e o risco de dano irreparável ou de difícil reparação. No contexto da saúde, essa ferramenta jurídica permite que pacientes obtenham rapidamente o acesso a tratamentos essenciais.
1.1. Requisitos para Concessão da Tutela de Urgência
Para que a tutela de urgência seja concedida, é necessário preencher os requisitos do artigo 300 do Código de Processo Civil (CPC), que são:
- Fumus boni iuris (fumaça do bom direito): evidências de que o paciente tem direito ao tratamento.
- Periculum in mora (perigo na demora): risco de agravamento da doença ou sofrimento do paciente devido à demora na obtenção do medicamento.
1.2. Aplicação da Tutela de Urgência na Saúde
Os tribunais brasileiros frequentemente concedem tutelas de urgência para garantir tratamentos médicos, sobretudo quando há indicação médica comprovada e falta de alternativas terapêuticas viáveis no mercado nacional.
2. Cobertura de Medicamentos pelos Planos de Saúde
Os planos de saúde são regulamentados pela Lei 9.656/98, que estabelece regras sobre a cobertura obrigatória de tratamentos médicos. No entanto, há debates sobre a inclusão de medicamentos de uso domiciliar, especialmente os importados.
2.1. O que Diz a Lei sobre Medicamentos de Uso Domiciliar?
O artigo 10, inciso VI, da Lei 9.656/98, estabelece que os planos de saúde não são obrigados a fornecer medicamentos de uso domiciliar. Contudo, há exceções, especialmente quando o remédio não pode ser adquirido em farmácias comuns e exige um procedimento especial de importação.
2.2. Exceções à Regra: Quando o Plano Deve Cobrir?
Os tribunais têm decidido que, quando um medicamento é essencial para o tratamento e sua importação é regulada pela ANVISA, a operadora de saúde tem o dever de custeá-lo.
3. Canabidiol (CBD) e sua Aplicação Médica
O canabidiol é uma substância derivada da Cannabis sativa, amplamente estudada por seus efeitos terapêuticos. No Brasil, seu uso é regulamentado pela ANVISA, que permite a importação mediante prescrição médica e autorização especial.
3.1. Indicações Terapêuticas do Canabidiol
O CBD tem sido utilizado para tratar diversas condições médicas, incluindo:
- Epilepsia refratária
- Transtorno do espectro autista (TEA)
- Dor crônica e fibromialgia
- Bruxismo severo e enxaqueca crônica
3.2. O Processo de Importação do CBD no Brasil
Como o canabidiol não é amplamente comercializado no Brasil, os pacientes precisam seguir um processo burocrático para sua aquisição, que envolve:
- Prescrição médica detalhada
- Pedido de autorização junto à ANVISA
- Compra em fornecedor internacional
- Desembaraço aduaneiro para liberação do produto
4. Jurisprudência sobre o Custeio do Canabidiol pelos Planos de Saúde
Os tribunais brasileiros já consolidaram precedentes sobre a obrigação dos planos de saúde em custear medicamentos à base de CBD.
4.1. Decisões do TJSP sobre o Custeio de CBD
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) tem proferido decisões favoráveis aos pacientes, entendendo que:
- O fato de o medicamento ser de uso domiciliar não exclui a obrigação de cobertura.
- A importação sob regime especial da ANVISA reforça a necessidade de custeio pelo plano de saúde.
- O não fornecimento pode causar danos irreparáveis à saúde do paciente.
4.2. Precedentes do STJ e TJSP
Decisões recentes demonstram o entendimento dos tribunais:
- AI 2249273-90.2024.8.26.0000 – Garantiu o fornecimento de CBD para tratamento de bruxismo crônico.
- AI 2256626-84.2024.8.26.0000 – Reafirmou que a ausência de produção nacional não exclui o dever de cobertura.
- AI 2154091-77.2024.8.26.0000 – Confirmou a obrigação dos planos de cobrir medicamentos à base de CBD para crianças com autismo.
5. Multas e Penalidades para Planos de Saúde que Negam a Cobertura
Quando um plano de saúde se recusa a fornecer o medicamento, a Justiça pode aplicar multas diárias para garantir o cumprimento da decisão.
5.1. Astreintes: O Que São?
Astreintes são multas impostas pelo Judiciário para forçar o cumprimento de uma ordem judicial. No caso dos planos de saúde, essas multas podem chegar a R$ 100.000,00, dependendo do impacto da negativa ao paciente.
5.2. Justificativa para a Aplicação de Multas Elevadas
Os tribunais consideram fatores como:
- Poder econômico da operadora de saúde
- Impacto da negativa na saúde do paciente
- Necessidade de coerção para cumprimento da decisão
6. O Caso do Agravo de Instrumento nº 2355174-47.2024.8.26.0000
O recente caso julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), sob o número 2355174-47.2024.8.26.0000, traz uma importante decisão sobre a obrigação dos planos de saúde de custear medicamentos à base de canabidiol.
6.1 Contexto do Caso
O agravado (paciente) solicitou ao seu plano de saúde a cobertura de um medicamento oral à base de canabidiol, necessário para o tratamento de bruxismo crônico e refratário. Como alternativa, seu médico assistente indicou esse medicamento devido à ineficácia dos tratamentos convencionais.
O plano de saúde, no entanto, negou a cobertura sob a alegação de que:
- O medicamento era de uso domiciliar e, portanto, não estaria coberto pelo contrato;
- O canabidiol não fazia parte do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS;
- A compra do medicamento exigia importação com autorização especial da ANVISA, tornando sua cobertura questionável.
Diante da negativa, o paciente recorreu à Justiça para obter a cobertura do medicamento por meio de tutela de urgência.
6.2 Decisão do TJSP
O TJSP manteve a decisão de primeira instância, determinando que o plano de saúde deveria cobrir o medicamento. Os principais fundamentos da decisão foram:
- Preenchimento dos requisitos do art. 300 do Código de Processo Civil (CPC): A tutela de urgência foi concedida, pois estavam presentes os requisitos da probabilidade do direito e do perigo da demora.
- Laudo médico atestando a necessidade do medicamento: O juiz considerou que o relatório do médico assistente comprovava o diagnóstico e a falha dos tratamentos alternativos.
- Fato de o remédio ser de uso domiciliar não exclui a obrigação do plano de saúde: O tribunal entendeu que, no caso concreto, o fato do medicamento ser administrado em casa não justifica a recusa do plano de saúde.
- Dificuldade de acesso ao medicamento: Como o produto não pode ser adquirido em farmácias comuns e depende de importação especial com autorização da ANVISA, a Justiça considerou que a negativa do plano prejudicava o paciente e violava o princípio da dignidade da pessoa humana.
Além disso, o tribunal manteve as astreintes (multa diária imposta à operadora de saúde pelo descumprimento da decisão judicial), destacando:
- O elevado poder econômico da operadora de plano de saúde, que pode arcar com a multa sem prejuízo financeiro significativo;
- A importância do tratamento para a qualidade de vida do paciente, justificando a necessidade de uma multa coercitiva para garantir o cumprimento da decisão.
Dessa forma, o recurso foi negado, e o plano de saúde permaneceu obrigado a custear o medicamento à base de canabidiol.
7. O Impacto das Decisões Judiciais para Pacientes e Planos de Saúde
A decisão do TJSP reflete um movimento crescente na jurisprudência brasileira a favor dos pacientes que necessitam de medicamentos à base de canabidiol. Esse cenário tem impacto tanto para os beneficiários dos planos de saúde quanto para as operadoras.
7.1 Para os Pacientes
- Maior acesso ao tratamento: Com decisões favoráveis, pacientes que antes tinham dificuldades para obter o medicamento agora têm mais chances de conseguir a cobertura via plano de saúde.
- Judicialização como alternativa: Muitos pacientes recorrem ao Judiciário como último recurso para garantir seus direitos. Esse caminho, apesar de eficaz, pode ser demorado e gerar custos adicionais.
- Possível revisão da legislação: O aumento de processos judiciais pode pressionar a ANS e o governo a incluir medicamentos à base de canabidiol no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, facilitando sua cobertura.
7.2 Para os Planos de Saúde
- Impacto financeiro: As decisões judiciais que obrigam as operadoras a custear medicamentos à base de canabidiol podem aumentar os custos operacionais dos planos de saúde.
- Revisão de políticas internas: Algumas operadoras podem reconsiderar suas políticas de cobertura para evitar processos judiciais e multas decorrentes do descumprimento de decisões.
- Pressão para revisão do rol da ANS: As operadoras podem buscar um diálogo com a ANS para atualizar a regulamentação sobre a cobertura desses medicamentos.
8. Como Garantir o Direito à Cobertura do Canabidiol?
Para pacientes que necessitam de medicamentos à base de canabidiol e enfrentam dificuldades com a cobertura pelos planos de saúde, algumas medidas podem ser tomadas:
- Obtenha um laudo médico detalhado: O relatório deve conter:
- Diagnóstico da doença;
- Histórico de tratamentos anteriores e sua ineficácia;
- Justificativa médica para o uso do canabidiol.
- Solicite a cobertura formalmente ao plano de saúde: Faça o pedido por escrito e guarde o protocolo de atendimento.
- Em caso de negativa, peça um parecer técnico da ANS: A Agência Nacional de Saúde Suplementar pode analisar a recusa do plano de saúde.
- Busque orientação jurídica: Caso a negativa persista, um advogado especializado em direito à saúde pode ingressar com uma ação judicial solicitando a cobertura do medicamento.
Conclusão
A cobertura de medicamentos à base de canabidiol pelos planos de saúde tem sido amplamente discutida no meio jurídico. Embora a lei exclua a obrigatoriedade de fornecimento de remédios de uso domiciliar, os tribunais têm decidido que, quando o medicamento exige importação especial e é essencial para o tratamento, a operadora deve arcar com os custos.
A concessão de tutela de urgência tem sido uma ferramenta essencial para garantir o direito dos pacientes, especialmente aqueles que sofrem de condições graves e refratárias a outros tratamentos. Dessa forma, a judicialização continua sendo uma alternativa para aqueles que enfrentam negativas indevidas por parte dos planos de saúde.
FAQs – Perguntas Frequentes
1. O plano de saúde pode negar a cobertura de canabidiol?
Depende do caso. Se o medicamento for essencial para o tratamento e exigir importação especial, há precedentes que garantem a cobertura.
2. O que fazer se o plano de saúde negar o medicamento?
É recomendável procurar um advogado e ingressar com uma ação judicial para obter a tutela de urgência.
3. O canabidiol tem registro na ANVISA?
Alguns produtos já possuem registro, mas muitos ainda precisam de autorização especial para importação.
4. Qual o valor das multas aplicadas aos planos de saúde?
Os valores variam, mas podem chegar a R$ 100.000,00, dependendo do impacto da negativa ao paciente.
5. A judicialização é a única alternativa?
Infelizmente, em muitos casos, recorrer à Justiça é a única forma de garantir o direito ao tratamento.